(fragmento do livro - Manuscritos)
Autor: Marcos Faria
Aprendi no catecismo que tudo começou com Adão e Eva comendo a maçã. Depois do castigo eles procriaram até chegar a mim. Eu queria muito subir na tal árvore genealógica e descobrir quem eram os parentes de nossa família mais próximos de Adão e Eva. Se todo mundo tomasse decisão recorrente, tudo acabaria lá com a fruta sendo mordida aos saboreios. Como decerto, tarefa igual é de impossibilidade aparente, não há outra forma que a aceitação daqueles que dividem conosco o mesmo sangue e reminiscência. Parente existe para cumprir os laços de carne e lembrança. Parece raiz que segura tronco. Se por descuido a raiz apodrece, assim também acontece com o tronco. A raiz de nossa família é bem cuidada. Saídos lá de Portugal, em Naus e fugas, caíram aqui no Brasil nossas primeiras origens de família. Se pudesse contar os tatara que acompanham os avôs eu chegaria ao número mil sem pressa. João e Maria, que não são personagens de contos com término feliz, foram os primeiros a aportar aqui. Isto por parte de pai. Não cheguei a ter conhecimento deles. Eu digo a você, sem dor de perdição. Não havia como saber já que o tempo nos engole a cada dia. Deles tenho apenas uma fotografia bem amassada que o pai cismou de colocar moldura e que hoje recebe na parede da porta da frente os primeiros olhares de quem entra em nossa casa. È tão engraçada que só vendo mesmo. João tem o cabelinho escorrido para trás e um nariz meio alargado. Queria muito descobrir o que havia na malinha de mão que ele carregava quando revelaram a fotografia. O braço dele esta sobre o ombro da Maria. Ela está vestida que é uma beleza sem fim. Um vestido de corte antigo, parece que é seda, mas nem sei se naquela época a trama deste tecido existia. O chapéu que ela usa por sobre a cabeça tem uma aba levantada na frente e um cachinho de cabelo pendendo na testa. Deles só tenho como real esta fotografia. Às vezes eu nem acredito que eles tiveram respirar e vida. Ficam lá na parede os dois. O pai tem sempre um minuto do dia para atiçar os olhos na fotografia e suspirar de um jeito que parece saudade. Eu não faço por medo. Certo dia pela madrugada ainda acordada, a mãe deu um berro de susto no quarto. O pai entrou como um corisco no quarto para prover a segurança. A mãe sentou-se na cama com uma brancura de morte no rosto. Preparou-se água com açúcar a espera do retorno de sua cor e calma. Relato dela foi que sua visão enxergou a Maria sentada ali na cama com o mesmo vestido da fotografia. Maria acenou pra mãe e pediu que cuidasse bem do pai. Depois do acontecido foi acesa uma vela de 7 dias em honra da alma da Maria. Para evitar mal-agouro, a intenção correu pro lado do João também. Assim os dois receberiam ordem de não voltar mais. Eu passei a semana inteira sem coragem de passar pela porta da frente. A mãe estranhava a minha volta em torno da cassa. Quando colocava os passo na cozinha ela já torcia meu calo: - Deixa disso menino. Agora que houve reza e vela para as almas deles, não carece de padecer de medo. Menos dia você vai ter que entrar pela porta frente. - Eu não duvido que tenha acontecido mesmo não, digo e confirmo sem vergonha. Alma de gente morta é coisa mais séria que muito mistério de vivo. O reboliço cismou de romper logo. O pai cismou de tirar a fotografia da parede e colocar dentro do guarda roupa. A mãe não sustentava a idéia de embutir lembrança de gente morta junto com as roupas e toalhas. O pavor de manter as portas do guarda roupa, com frestas abertas por descuido de mau fechamento, era eterno. Não teve jeito o pai retrocedeu na decisão e depositou o quadro no meio de suas ferramentas.