quinta-feira, 1 de maio de 2008

Fragmento de crônica ainda não terminada

"Quero me habituar às alturas, como os pombos".


Quando soube que a vida era mais do que podia imaginar, soltou a bagagem das mãos e sentou-se no banco, cansado. Eram talvez duas ou três da tarde. O sol queimava sua cabeça, pesada, insana. Não havia mais o que fazer a não ser esperar por um ônibus ou ir pelo deserto da avenida, rastejando, imune. Há muito tempo não percebia o quanto é difícil estar estranhamente triste. A velha sensação de afogamento voltara. Já não sabia mais o que viria depois disso, não entendia. E o sol não parava de queimar sua cabeça deixando escorrer pelas costas e pela testa, gotículas de água e sal. Levantou-se zumbi, pegou a bagagem e fez sinal para o ônibus que apontava ao final da esquina. Era hora de começar tudo outra vez. Sentou-se, sozinho, bagagem no colo, peso de regresso. Parecia covardia invadir a vida de Antônio novamente – Eu não acredito que estou voltando, não acredito porque faço isso ainda. E esse era o exato ponto que ruminava, as velhas sombras de um amor cego e insondável. Tudo voltava ao ponto zero. Ao início que mais uma vez o atormentava. Mesmo depois de anos, de intermináveis brigas, fracassos, risos e lençóis amassados ele queria, renegado, a possibilidade de reatar um quebra-cabeça de carne e alma. Nada havia chegado ao fim verdadeiro, nada havia sido dito, cuspido e entregue. – A culpa é sua -. Lembrou-se da porta batida com força, do grito de desespero e da vontade de deixar para trás tudo. Sentiu o arrepio da lembrança. Cena repetida, tormento. Parecia acordar de um estado de catarse. A imagem de Antônio não saia da sua cabeça. Ela às vezes escondia-se entre um dia de cansaço, um copo de cerveja e a insônia. Mas nunca se esvaia de todo, nunca sumia, nunca era miragem, ilusão. Era um rosto pregado na sua pele, na sua nuca, na sua saudade – Eu me traio, eu me traio – repetiu entre os lábios, sussurrando, incompreendido. Onde foi que perdera o senso, onde havia deixado sua mágoa, seu rancor? Talvez nas manhãs acordadas, desde o dia que foi embora, morto, ferido, inconstante. Tudo passava rápido dentro dele, rápido como as pessoas refletidas pela janela do ônibus. Parada brusca, desceu junto com o bolo de gente que enlatava-se no ônibus. Viu Antônio sentado na plataforma, esperando. Pulsação acelerada, vontade de desistir. Não prepara nada, não ensaiara frases, expectativas. Abaixou a cabeça e seguiu devagar, olhando para os próprios sapatos empoeirados. Quando criou coragem para voltar à consciência, desciam os dois em silêncio juntos pela avenida movimentada. Não se olhavam, não trocavam palavras – Porque me traio – repetiu, outra vez. Seguiu-se então o hall do prédio, o velho porteiro e o elevador.Décimo andar. O silêncio continuava dentro, asfixiante. Sentiu outra vez um aperto na garganta, vontade de chorar – Antônio, será que é certo o que a gente está fazendo? – A pergunta cortou o silêncio e invadiu o elevador. Pausa. Antônio passou a mão pelo cabelo (como sempre fazia quando estava acorrentado numa situação incômoda). Olhou para o teto do elevador, suspirou – Eu quero. Você quer? – Pausa. As portas de aço se abriram. Barulho de chaves, apartamento desarrumado. – A arrumadeira não veio essa semana, daqui a pouco eu dou uma organizada. Deixa sua mala no quarto. Vou preparar alguma coisa pra gente comer – Com a bagagem pesando seus braços, formigando suas mãos ele passou pelo corredor, cinzeiros cheios, restos de incenso no aparador. Entrou no quarto, cama desarrumada, mais cinzeiros, revistas, escrivaninha repleta de papéis, livros abertos, pontas de lápis. Jogou a mala sobre a cama, sentou-se na cadeira da escrivaninha, suspirou como antes, colocou a cabeça entre as mãos e procurou não pensar em nada. Procurou uma fuga, um caminho que fosse mais silencioso que a confusão dentro dele. Deitou-se na cama, cheirou os lençóis e o cheiro de Antônio impregnou sua respiração. Cheiro que quase esqueceu e que reacendia nele a velha dependência do outro, segurança e resquícios de saudade. Virou a cabeça para o lado. Viu no criado mudo a foto dos dois. Sorriam. O cansaço da dor foi apagando seus sentidos e adormecendo suas dúvidas.

2 comentários:

retrolectro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
retrolectro disse...
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